Um grupo internacional de cientistas lançará uma força-tarefa mundial com o objetivo de identificar novos vírus que poderão ameaçar a humanidade no futuro. O anúncio da iniciativa foi feito em um artigo publicado nesta quinta-feira, 22, na revista Science e assinado por 10 cientistas, incluindo o médico e biofísico brasileiro Carlos Morel, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Instituto Nacional de Inovação em Doenças Negligenciadas.
O médico e biofísico brasileiro Carlos Morel, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Instituto Nacional de Inovação em Doenças Negligenciada Foto: Peter Ilicciev/Fiocruz
Os autores do artigo afirmam que o projeto permitirá acelerar o passo da descoberta de novos vírus em um ritmo sem precedentes, gerando um enorme volume de dados e tornando o combate a futuras pandemias mais efetivo, ao acelerar o desenvolvimento de vacinas, drogas e terapias. De acordo com Morel, estima-se que cerca de 1,6 milhão de vírus que circulam no planeta ainda seja completamente desconhecidos pela ciência e que entre 600 mil e 800 mil deles sejam capazes de infectar humanos - e eventualmente causar epidemias.
"Há uma enorme defasagem entre nossa capacidade de descobrir vírus desconhecidos e a taxa de surgimento de novos vírus. Estamos sempre um passo atrás", disse Morel ao Estado. O lançamento da iniciativa, batizada de Projeto Viroma Global, está previsto para o fim de 2018. Segundo Morel, o objetivo é identificar o maior número possível de vírus e fornecer dados que sejam úteis para intervenções de saúde pública em futuras epidemias. De acordo com o pesquisador, o artigo na Science é um chamado para que a comunidade científica e a sociedade percebam a importância de se identificar os vírus desconhecidos.
"É fundamental conhecermos os candidatos a causar a próxima grande pandemia. Quando há uma epidemia e o vírus é totalmente desconhecido, temos que começar todos os estudos da estaca zero, perdendo um tempo precioso até que seja possível desenvolver vacinas e terapias. Além disso, a evolução dos vírus é muito rápida e o tempo todo surgem novas ameaças", explicou Morel.
A Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars, na sigla em inglês), que teve início na China em 2003 e se espalhou por todo o mundo, foi um exemplo de como é difícil criar formas de combate a surtos de vírus inicialmente desconhecidos. "A pandemia ocorreu há 15 anos e até hoje não temos uma vacina", disse Morel.
Segundo o cientista, assim como a Sars quase todas as pandemias registradas recentemente tiveram origens em animais e, por isso, o projeto terá foco nos vírus cujos vetores são mamíferos e aves.
Há dois alvos principais para a busca de novos vírus, segundo Morel. Um deles está nos locais onda há muita biodiversidade, com grande quantidade de aves - que são notoriamente potenciais transmissores. O outro está nos locais populosos onde há um contato muito estreito entre pessoas e aves ou mamíferos, como os mercados da China, por exemplo.
"Para explicar de forma simples, podemos dizer que os vírus como os da gripe têm o genoma partido em pedacinhos. Se houver dois vírus diferentes circulando juntos, um deles em humanos e outro em suínos, por exemplo, é possível que esses pedacinhos se misturem, gerando um novo vírus", explicou Morel.
De acordo com Morel, a identificação de novos vírus é extremamente cara, porque é preciso treinar grandes equipes capazes de coletar amostras de vírus perigosos em diversas partes do mundo. Estima-se que a identificação de todos os 1,6 milhão de vírus previstos será preciso investir cerca de US$ 7 bilhões. No entanto, a taxa de descoberta de novos vírus é muito maior no início do processo de coleta de amostras e, por isso, com US$ 1,2 bilhão já seria possível descobrir e avaliar os riscos de 71% dos vírus que infectam animais.
"O investimento é alto, mas temos que levar em conta que os custos de uma epidemia também são extremamente elevados. A epidemia de Sars, por exemplo, devastou a indústria do turismo no Canadá, resultando em prejuízos de milhões de dólares. Precisamos ter sempre em mente que é preciso investir para evitar uma epidemia que poderia causar prejuízos catastróficos, tanto do ponto de vista econômico como social e de saúde pública", disse o cientista.
De acordo com o artigo na Science, as questões relacionadas à gestão, operação técnica e governança do projeto já vêm sendo alinhavadas desde 2016 por diversos parceiros na Ásia, África, Europa e Américas, envolvendo a indústria, a academia, agências intergovernamentais, organizações não governamentais e o setor privado. O trabalho de campo para a "caça" aos vírus desconhecidos começará na China e na Tailândia, ainda neste ano.
"A natureza colaborativa internacional e o seu caráter global do projeto deverão ajudar no levantamento de fundos junto a diversos doadores internacionais, incluindo agências governamentais com foco em saúde e doadores filantrópicos com foco em tecnologia e ciência", informou o texto.
Além de Morel, os outros autores do artigo são Dennis Carroll, da Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos; Peter Daszak, da EcoHealth Alliance (Estados Unidos); Nathan Wolfe, da Metabiota (Estados Unidos); George Gao, do CDC China; Subhash Morzaria, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês); Ariel Pablos-Méndez, da Universidade Columbia (Estados Unidos); Oyewale Tomori, da Academia Nigeriana de Ciências; e Jonna Mazet, do Instituto One Health.
Esta matéria foi originalmente publicada no jornal O Estado de S.Paulo.
Referência:
CARROLL, Dennis et al. The Global Virome Project. Science, v. 359, n. 6378, p. 872-874, 23 feb. 2018. DOI: 10.1126/science.aap7463. Disponível em: http://science.sciencemag.org/content/359/6378/872