Em tempos de crise econômica, é comum que a sociedade questione a aplicação do dinheiro público e queira privilegiar atividades que deem retorno visível e imediato. Áreas em que os resultados são mais difusos ou menos palpáveis frequentemente passam a ser vistas como não prioritárias na hora da alocação dos recursos. Quando esse fenômeno afeta o sistema de pesquisa, cujo financiamento depende em grande medida – varia de país a país – do Estado, com frequência ele se traduz na oposição entre pesquisa básica e pesquisa aplicada, como se fossem conceitos independentes e não profundamente interligados. O investimento em pesquisa que resulta imediatamente em novos produtos e tecnologias tende a ser visto como o mais importante, por trazer retorno tangível à sociedade. Já os recursos direcionados à ciência básica às vezes são considerados uma extravagância, como pontuou em 1967 o então governador eleito da Califórnia, o republicano Ronald Reagan, ao propor, como medida para resolver problemas orçamentários, que os contribuintes deixassem de financiar a “curiosidade intelectual” em programas e cursos das universidades estaduais. “Nós acreditamos que há certos luxos intelectuais que talvez pudéssemos dispensar”, disse Reagan, atraindo críticas de toda parte. “Se uma universidade não é o lugar em que a curiosidade intelectual deve ser encorajada e subvencionada, então ela não é nada”, reagiu à época o jornal The Los Angeles Times, em editorial.
Na realidade da ciência no século XXI, o debate demanda classificações bem mais complexas do que as duas categorias, pesquisa básica e pesquisa aplicada, têm a oferecer. “Os conceitos de pesquisa pura e aplicada podem ter alguma utilidade em discussões abstratas e funcionar em situações específicas, mas não servem adequadamente para categorizar a ciência”, sustenta Graeme Reid, professor de política científica da University College London, no Reino Unido, e autor do relatório Why should the taxpayer fund science and research? (“Por que o contribuinte deveria financiar a ciência e a pesquisa?”), publicado em 2014. Em primeiro lugar, diz ele, o denominador comum para classificar a ciência deve ser a “excelência”, sem a qual nem o conhecimento básico nem o aplicado produzem resultados consistentes.
Reid cita o exemplo do Higher Education Funding Council for England (Hefce), órgão que financia e avalia o sistema universitário de ensino e pesquisa da Inglaterra. O Hefce distribui recursos sem fazer referência às duas categorias, uma vez que a qualidade da pesquisa é que a habilita a ter impacto. O relatório menciona um documento lançado em 2010 pelo Conselho de Ciência e Tecnologia ligado ao premiê do Reino Unido, intitulado A vision for UK research, segundo o qual o cerne da atividade de pesquisa é sua capacidade de fazer perguntas importantes; a insistência em distinguir uma vertente pura e outra aplicada gera mais problemas e divisões do que produz soluções. Reid observa que os benefícios decorrentes de investimentos em pesquisa ganharam formas variadas que vão muito além da polarização entre as vantagens de compreender melhor os fenômenos por um lado e, por outro, os ganhos gerados pelo desenvolvimento de tecnologias – tais como as startups oriundas de universidades que podem transformar conhecimento em riqueza rapidamente, a atração de investimentos globais em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para universidades e polos de inovação ou, ainda, a oferta de mão de obra altamente especializada a empresas e organizações públicas, entre outras. “O ambiente de pesquisa é um ecossistema delicado que oferece múltiplos benefícios para a economia e a sociedade ao longo de caminhos complexos e interligados”, diz.
No lugar de distinguir os benefícios da ciência básica e da aplicada, atores e instituições do sistema de ciência construíram novas formas de classificar os objetivos da pesquisa, que orbitam em torno de um conceito-chave: o impacto que o investimento pode produzir. “Impacto é um conceito bastante amplo e tem várias dimensões, como o social, o econômico e o intelectual”, destacou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, no capítulo que escreveu para o livro University priorities and constraints (Economica, 2016), que reúne as contribuições de 23 líderes de universidades de pesquisa apresentadas em junho de 2015 no fórum Glion Colloquium, na Suíça. Existem pesquisas que promovem benefícios à sociedade ao inspirarem ou darem respaldo a políticas públicas em praticamente todas as esferas. Um exemplo geral é o da contribuição de várias disciplinas para a compreensão de fenômenos ligados ao clima. Outro, específico, é o papel dos resultados do programa Biota-FAPESP na atividade legislativa. Criado em 1999 para mapear a biodiversidade do estado de São Paulo, o programa produziu conhecimentos divulgados na forma de artigos científicos, livros, atlas e mapas, que serviram de referência para a criação de seis decretos governamentais e 13 resoluções sobre o ambiente.
Num estudo de 2005, financiado pelo Departamento de Pesquisa, Ciência e Tecnologia de Quebec, no Canadá, os cientistas políticos Benoît Godin e Christian Doré buscaram mapear os diferentes tipos de impacto gerados pela pesquisa e chegaram a uma lista de 11 itens. Alguns são notórios, como o científico, o tecnológico e o econômico. Outros são menos estudados, como o impacto cultural, entendido como as transformações nas habilidades e atitudes dos indivíduos geradas pela compreensão ampliada de fenômenos da natureza; ou o impacto organizacional, em que novos conhecimentos ajudam a aperfeiçoar a gestão (ver quadro). “Embora o impacto econômico não deva ser negligenciado, ele representa uma fração de um todo que se estende para as esferas social, cultural e organizacional da sociedade”, explicaram Godin e Doré no estudo.
A ciência pela ciência
Um grande vilão nessas discussões é a chamada pesquisa conduzida pela curiosidade, entendida de forma equivocada como sinônimo de pesquisa básica. Trata-se, na verdade, daquela em que o cientista escolhe o tema sobre o qual se debruçará – em vez de ser induzido a pesquisar determinada área ou problema –, que pode ter um caráter abstrato, aplicado ou ser uma combinação de ambos. Embora não intencionalmente, essa vertente já produziu contribuições marcantes em áreas como lasers, física atômica e biotecnologia. Um caso clássico aconteceu em 1983 quando duas equipes de pesquisadores, trabalhando em países diferentes, descobriram que um retrovírus, posteriormente batizado de HIV, era o causador de uma doença recém-descoberta, a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids). As equipes do norte-americano Robert Gallo e do francês Luc Montagnier obtiveram êxito graças a anos de pesquisa sobre retrovírus impulsionada pela curiosidade de cientistas, pois não se imaginava que tivesse relevância para a saúde humana (ver mais exemplos).
Em 1967, o governador da Califórnia, Ronald Reagan, enfrentou protesto contra seu plano de cortar US$ 64 milhões do orçamento das universidades estaduais: para ele, financiamento à “curiosidade intelectual” poderia ser dispensadoImagem: Bettmann/Getty Images
A pesquisa com impacto intelectual pode também resultar em impacto econômico ou social, mas uma parte dela servirá exclusivamente para ampliar o limiar do conhecimento, sem um retorno tangível imediato. “Nem sempre há um ponto final a ser alcançado pela pesquisa básica”, disse o bioquímico Stephen Buratowski, professor da Universidade Harvard, cujo laboratório estuda mecanismos de expressão dos genes em células eucariontes, numa entrevista ao site da Harvard Medical School. “Muitos dos assuntos estudados a partir da curiosidade dos cientistas buscam responder a questões fundamentais da biologia. Sua compreensão permite seguir adiante e enfrentar problemas clínicos concretos.”
Um exemplo de nova categoria de produção de conhecimento fortemente baseada na pesquisa movida pela curiosidade é a chamada pesquisa transformadora, que envolve ideias e descobertas com potencial para mudar radicalmente a compreensão sobre conceitos científicos e criar novos paradigmas. O termo, adotado na segunda metade da década passada pela National Science Foundation (NSF), principal agência de pesquisa básica dos Estados Unidos, e pelo Engineering and Physical Sciences Research Council (EPSRC), do Reino Unido, define não somente pesquisa que envolve criatividade e alto risco, mas também aquela com capacidade de levar a tecnologias radicalmente novas – com possibilidade de retorno fabulosa. Mas, para alcançar esses resultados, é preciso considerar que ideias realmente revolucionárias podem demandar um longo tempo de desenvolvimento, possivelmente exijam altos investimentos e, ao final, talvez não apresentem os resultados desejados. Assim é a ciência.
A dificuldade de compreender essas limitações da ciência frequentemente gera tensões. Em fevereiro, foi aprovada na Casa dos Representantes dos Estados Unidos, a Câmara dos Deputados do país, um projeto de lei que propõe mudanças no processo de avaliação da NSF. O texto, que ainda precisa ser votado pelo Senado, exige que todo projeto de pesquisa apresentado à NSF venha acompanhado por uma justificativa descrevendo como ele não apenas “promove o progresso da ciência nos Estados Unidos” mas também atende ao “interesse nacional”. “Muitos dos critérios mencionados para determinar se um projeto é de interesse nacional não se aplicam à ciência básica”, reagiu John Holdren, diretor do escritório de Política Científica e Tecnológica da Casa Branca, ao propor o veto ao projeto se ele for aprovado. “Os autores da lei questionam se a pesquisa vai aumentar a competitividade da economia, melhorar a saúde e o bem-estar, fortalecer a defesa nacional. Isso só tem a ver com pesquisa aplicada. Será que eles não entendem que a pesquisa básica envolve a busca da compreensão científica sem antecipar qualquer benefício particular?”, indagou. Esse tipo de pressão no parlamento não é novidade para a NSF. Em 2013, a agência suspendeu a seleção anual de projetos em ciência política depois que o Congresso aprovou uma lei impedindo-a de financiar pesquisas nesse campo do conhecimento sem que houvesse garantias de que elas beneficiariam a segurança nacional ou tivessem algum interesse econômico. Nas negociações do orçamento, o senador republicano Tom Coburn referiu-se ao “desperdício de recursos federais em projetos de ciência política”.
Conhecimento e desenvolvimento
A discussão sobre o investimento público em pesquisa vem desde que vários países decidiram estruturar sistemas públicos nacionais de ciência e tecnologia. Isso aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial, quando a aplicação de uma série de desenvolvimentos científicos, como o radar e o plástico e a expansão da ciência da nutrição, teve grande impacto, consolidando a percepção de que conhecimento leva ao desenvolvimento, justificando dessa forma o financiamento estatal. O modelo estabelecendo que cabe ao Estado apoiar a pesquisa básica e a aplicada foi desenhado pelo engenheiro norte-americano Vannevar Bush, que chefiou o US Office of Scientific Research and Development (OSRD), órgão do governo norte-americano por meio do qual praticamente todo o esforço de P&D foi executado durante a guerra. Por encomenda do governo, em 1945 Bush produziu um documento intitulado Science, the endless frontier (Ciência, a fronteira sem fim), no qual propôs que a pesquisa básica deveria ser realizada sem pensar em finalidades práticas. Esse conhecimento geral forneceria meios para enfrentar um grande número de problemas práticos importantes, ainda que não desse respostas completas específicas para nenhum deles – caberia à pesquisa aplicada providenciar as soluções. “A maneira mais simples e eficaz pela qual o governo pode fortalecer a pesquisa empresarial é apoiar a pesquisa básica e desenvolver talentos científicos”, escreveu Bush.
Num artigo publicado em 2014 na Revista Brasileira de Inovação, Carlos Henrique de Brito Cruz lembra que Bush considerava insuficiente o volume de pesquisa básica produzido nos Estados Unidos naquela época, tanto que muitas aplicações desenvolvidas no país se baseavam em conhecimento fundamental oriundo de universidades europeias. As reações que o relatório suscitou nos Estados Unidos foram curiosas, como mostrou Brito Cruz: “O New York Times criticou por achar que o relatório propunha pouco envolvimento governamental no apoio à pesquisa; o Wall Street Journal criticou, defendendo que a indústria poderia fazer tudo que ali se propunha, desde que recebesse mais redução de impostos via incentivos fiscais. E o diretor do Escritório de Orçamento do governo, Harold Smith, considerou inadequada a defesa de liberdade de pesquisa com recursos públicos. Jocosamente ele sugeriu que o relatório poderia ter seu título trocado para ‘Ciência: a despesa sem fim’”.
“Bush defendeu a liberdade de pesquisa e o investimento em ciência desvinculado de qualquer tipo de interesse sobre aplicações”, conta a cientista política Elizabeth Balbachevsky, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Para Bush, a ciência constituía uma fonte inesgotável de conhecimento e de desenvolvimentos que propiciava inovações. O documento inspirou a criação da NSF em 1950 e serviu de norte para a formação de agências de fomento à pesquisa de vários países, inclusive o Brasil, interessados em criar seus sistemas de ciência e tecnologia.
Esse sistema funcionou sem grandes sobressaltos até os anos 1970, quando o mundo viveu a primeira crise econômica pós-guerra abarcando os principais países desenvolvidos, que arrastou consigo muitos países em desenvolvimento. Os governos começaram a cobrar um retorno mais rápido dos investimentos públicos em ciência. “O custo cada vez mais alto da pesquisa também pressionou os orçamentos de governos e agências de fomento e contribuiu para levar à busca do impacto e do resultado de curto prazo”, explica Brito Cruz. Segundo dados do Tufts Center for the Study of Drug Development, os custos de testes pré-clínicos e clínicos de novos medicamentos aumentaram 15 vezes entre as décadas de 1970 e 2010 – apenas na década passada, o aumento foi de 145%. Ao mesmo tempo, buscou-se ampliar e compreender melhor as interações das universidades com as empresas e o governo. “O boom de empresas startups a partir da década de 1980 deixou claro para os contribuintes e seus representantes que havia ali uma oportunidade madura a ser explorada: a de criar riqueza a partir do conhecimento numa velocidade bem maior do que a obtida antes”, diz Brito Cruz.
Em 1980, entrou em vigor o Bayh-Dole Act, legislação norte-americana que trata da propriedade intelectual decorrente de pesquisa financiada pelo governo. Até então, o governo não tinha uma política unificada quanto a essas patentes. Acordos de financiamento de pesquisa firmados pelas agências governamentais com instituições de pesquisa, empresas ou organizações sem fins lucrativos passaram a incluir cláusulas que permitem que o governo abra mão da titularidade de invenções. Uma dimensão importante da nova legislação consistiu na ampliação dos resultados de pesquisa patenteáveis, que passaram a incluir conhecimentos e métodos não diretamente associados a uma aplicação.
Parcerias entre universidades e empresas, programas de apoio à pesquisa em pequenas empresas e licenciamento da propriedade intelectual produzida por pesquisadores se tornaram alvos de agências de fomento, universidades e instituições de pesquisa. A intensidade da interação entre universidades e empresas tem como uma de suas medidas a participação relativa da indústria no financiamento à pesquisa. Nos Estados Unidos, essa porcentagem oscilou entre 5% e 7% em anos recentes. Na maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a participação do setor privado no financiamento da pesquisa das universidades varia de 2% a 10%. Um ponto fora da curva é a Alemanha, onde chega a 14%.
Tais interações são, em geral, vias de mão dupla. As indústrias recorrem às universidades para partilhar riscos da pesquisa, além de ter acesso a cientistas qualificados, instalações apropriadas e quadros de pesquisadores e estudantes que podem robustecer seu corpo de pesquisa. As universidades tendem a enxergar as colaborações como uma oportunidade de captar recursos para pesquisa e ter acesso aos desafios científicos e tecnológicos enfrentados pelas forças produtivas. De acordo com Carlos Américo Pacheco, professor do Instituto de Economia da Unicamp, a experiência internacional mostra que a produção de patentes nas universidades e o licenciamento de propriedade intelectual para as empresas ocupam papel importante, porém complementar, no interesse das empresas. “As fontes de informação para a inovação tecnológica das empresas são mais baseadas na sua cadeia de fornecedores e de clientes do que nas universidades. É com a ciência que as empresas viabilizam seus esforços de desenvolvimento, mas elas se pautam mais no que o mercado pede do que no que a universidade tem a oferecer”, afirma. Segundo ele, a criação de startups tem sido um mecanismo mais sofisticado e eficiente de aproximar a academia do setor privado. “Isso tem fortalecido certos clusters regionais em torno das universidades, atraindo laboratórios de empresas e investidores, que se tornam um microcosmo estimulante”, esclarece Pacheco, que foi secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia entre 1999 e 2002.
O quadrante de Pasteur
Um marco do debate sobre a distinção entre ciência básica e aplicada foi a publicação do livro O quadrante de Pasteur – A ciência básica e a inovação tecnológica (Editora Unicamp, 2005), do cientista político Donald Stokes, da Universidade de Princeton. Na obra, Stokes propôs uma nova classificação. Além das pesquisas básicas – que tem como bom exemplo os trabalhos do físico dinamarquês Niels Bohr sobre a estrutura atômica e a física quântica na primeira metade do século XX – e as de desenvolvimento tecnológico – simbolizadas pela iluminação elétrica de Thomas Edison –, Stokes destacou outra categoria: a das que podem contribuir para o avanço do conhecimento ao mesmo tempo que têm perspectivas de aplicação prática de alto impacto (ver quadro). As investigações do francês Louis Pasteur na área de microbiologia, que fizeram avançar o conhecimento e renderam benefícios econômicos, são usadas como um dos exemplos dessa categoria, além de inspirar o título do livro.
“Stokes mostrou que o modelo de Vannevar Bush funcionou nos Estados Unidos de modo diferente do que se verificou em outros países, uma vez que o governo norte-americano investia muito em áreas básicas, mas que buscavam responder questões práticas de médio e de longo prazo”, afirma Balbachevsky. “É o caso de agências como os Institutos Nacionais de Saúde, que detêm mais recursos do que a NSF, ou o Departamento de Defesa.” Os Estados Unidos sempre mantiveram um sistema dual, preocupando-se com o avanço do conhecimento, de um lado, e aplicações de outro – e cada agência de fomento destina recursos às duas categorias (ver quadro). A percepção de que esse tipo de investimento multiplicou a capacidade de inovação norte-americana mobilizou a Europa nos anos 1990. “Os países europeus haviam seguido o modelo de Bush e produziram ciência de alta qualidade, mas não desenvolveram a mesma interface com o setor produtivo”, prossegue Balbachevsky. O que se viu, nas últimas duas décadas, foi um esforço na Europa para criar interfaces com o setor empresarial. “Na Comunidade Europeia, hoje, praticamente todos os programas buscam formar redes nas quais governos e empresas entram com uma parte dos recursos.”
No Horizonte 2020, principal programa científico da União Europeia, com orçamento de € 80 bilhões (cerca de R$ 285 bilhões) de 2014 a 2020, os recursos são divididos em três partes. Uma delas é a pesquisa básica, que financia projetos conduzidos pela curiosidade, mas também em temas que se propõem a dar lastro a novas tecnologias. A segunda é a pesquisa em empresas, que disponibiliza recursos e créditos para grandes, médias e pequenas companhias, inclusive em programas cujo retorno é considerado de alto risco. E, por fim, a da pesquisa que busca enfrentar “desafios da sociedade” em tópicos interdisciplinares como envelhecimento da população, eficiência energética e segurança alimentar.
A noção de desafio da sociedade tornou-se onipresente no orçamento de pesquisa de muitos países, de acordo com um relatório divulgado em outubro de 2015 por um grupo de pesquisadores da Unidade de Pesquisa em Política Científica da Universidade de Sussex, na Inglaterra. O trabalho, que comparou o investimento público em P&D realizado em países nórdicos (Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia), com alguns dos Bric (Brasil, Índia e China) e os Estados Unidos, mostrou que essa categoria ganhou ênfase nas estratégias de todas as nações estudadas, com investimentos em áreas como energia, clima e saúde. O ponto fora da curva, segundo o relatório, são os Estados Unidos, onde as dotações do governo para P&D têm forte concentração na área de defesa (53% do total em 2013), com a área da saúde em segundo lugar (24,3% do total). A pesquisa conclui que não existe um padrão envolvendo a parcela ideal de investimento a ser dedicada para as pesquisas básica e aplicada. A tendência nos países nórdicos é despender perto de 40% dos recursos públicos em ciência na pesquisa básica. Já a China e a Índia despendem uma proporção menor, na casa dos 20% a 25% (ver quadro). O estudo não encontrou dados consolidados sobre a divisão de investimentos no Brasil.
Estado empreendedor
Afinal, o Estado deve ou não investir em pesquisa? Para a economista italiana Mariana Mazzucato, professora da Universidade de Sussex, o investimento público em ciência tem um papel crucial na produção de conhecimento, principalmente quando esse processo envolve custos e riscos elevados, que são evitados pelas empresas. Esse é um dos motes de seu livro O Estado empreendedor (Companhia das Letras, 2014). Segundo a obra, mesmo em áreas altamente inovadoras, como a farmacêutica, a de energias renováveis ou a de tecnologia da informação, o setor privado só entra em campo depois de o financiamento público ter bancado investimentos vultosos em pesquisa em fases nas quais os resultados eram totalmente incertos. “Na biotecnologia, nanotecnologia e internet, o capital de risco chegou 15 ou 20 anos depois que os investimentos mais importantes foram feitos com recursos do setor público”, escreveu Mazzucato. “O Estado está por trás da maioria das revoluções tecnológicas e dos longos períodos de crescimento. É por isso que um ‘Estado empreendedor’ é necessário para assumir o risco e a criação de uma nova visão, em vez de apenas corrigir as falhas do mercado.” Em suas palestras, ela menciona o exemplo dos smartphones para mostrar que boa parte da tecnologia que eles contêm dependeu de investimentos públicos, notadamente do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, quando nem se imaginava o alcance que teriam, como a internet, o sistema de navegação GPS e a tela sensível ao toque.
A defesa do investimento estatal na chamada pesquisa básica ganhou recentemente o respaldo do país que mais investe em P&D em termos relativos – o equivalente a 4% de seu Produto Interno Bruto – e que, tradicionalmente, despende menos de 20% desse total em ciência básica: a Coreia do Sul. A estratégia que pavimentou o desenvolvimento de sua economia, baseada no aperfeiçoamento e no barateamento de tecnologias criadas em outros países, voltou sua atenção para a pesquisa básica. Na cidade de Daejeon está sendo construído um experimento voltado para detectar a existência do áxion, uma partícula que hipoteticamente comporia a chamada matéria escura, que forma boa parte do Universo mas é invisível. Trata-se de uma iniciativa de alto risco, que simboliza a ambição do país de se tornar uma liderança em pesquisa básica. Se tiver êxito, o projeto, que custa ao país US$ 7,6 milhões por ano, poderia dar à Coreia do Sul um sonhado prêmio Nobel. Em maio, a presidente sul-coreana Park Geun-hye anunciou que aumentará em 36% o nível de financiamento da pesquisa básica no país. “A pesquisa básica começa com a curiosidade intelectual de cientistas e técnicos, mas pode se tornar uma fonte de novas tecnologias e indústrias”, disse ela, segundo a revista Nature.
Havendo consenso em que o Estado precisa investir em pesquisa pelos frutos tangíveis e intangíveis que ela rende, persiste a discussão sobre como distribuir os recursos disponíveis para atingir expectativas da sociedade no curto e no longo prazo. As questões que se colocam para políticos e gestores do sistema público de ciência e tecnologia consistem em determinar o quanto deve ser destinado a cada categoria de pesquisa e até que ponto eles devem interferir, ao distribuírem recursos, para determinar o que os cientistas devem pesquisar. A busca de equilíbrio é importante para que as instituições públicas de pesquisa consigam obter resultados de impacto para a sociedade e ao mesmo tempo sigam produzindo um estoque consistente de conhecimento fundamental. Quando todo mundo se move para um só lado do barco, ele acaba tombando, disse Francis Collins, presidente dos Institutos Nacionais de Saúde, ao defender, num artigo da revista Science de 2012, a importância de preservar os dispêndios da agência em pesquisa básica. Mas também cabe aos pesquisadores mostrar à sociedade continuamente o que estão fazendo e os impactos do conhecimento produzido, conforme sustentou um editorial da revista Nature, no final de julho, ao comemorar os resultados de uma avaliação-piloto feita pelo European Research Council sobre 199 projetos de pesquisa básica que financiou. A avaliação mostrou que três quartos dos projetos geraram avanços científicos significativos e pelo menos um quarto teve impacto sobre a economia, a sociedade ou a formulação de políticas.
A utilidade do “conhecimento inútil” é sintetizada pela conversa entre o educador norte-americano Abraham Flexner, fundador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, e o empresário George Eastman, inventor do filme fotográfico, relatada em artigo publicado por Flexner na revista Harpers, em 1939. Eastman pensava em dedicar sua vasta fortuna à promoção da educação em temas úteis. Flexner perguntou ao empresário quem ele considerava o “trabalhador da ciência mais útil do mundo”. Ouviu prontamente como resposta: Guglielmo Marconi, o italiano que inventou o rádio. Flexner surpreendeu seu interlocutor ao declarar que, independentemente da utilidade do rádio, a contribuição do italiano era mínima. Explicou que Marconi não teria feito nada sem as contribuições do cientista escocês James Clerk Maxwell, cujas equações abstratas impulsionaram investigações no campo do magnetismo e da eletricidade, e do físico alemão Heinrich Hertz, que mais tarde demonstrou a existência da radiação eletromagnética. “Nem Maxwell nem Hertz tinha qualquer preocupação relacionada à utilidade de seu trabalho; tal pensamento nunca passou pela cabeça deles. Eles não tinham nenhum objetivo prático. Evidentemente, o inventor, no sentido legal, foi Marconi, mas o que Marconi inventou? Apenas um último detalhe técnico, um dispositivo de recepção, o coesor, que já se tornou obsoleto, quase universalmente descartado”, disse Flex-ner. Hertz e Maxwell não inventaram nada, mas seu “trabalho teórico inútil” foi utilizado por um técnico inteligente para criar novos meios de comunicação, utilidade e diversão, escreveu o educador. “Quem foram os homens úteis? Não Marconi, mas Clerk Maxwell e Heinrich Hertz. Hertz e Maxwell eram gênios sem pensamento utilitário. Marconi foi um inventor inteligente, com nenhum outro pensamento além do utilitário.”
Referências:
BRITO CRUZ, C. H. “University research comes in many shapes”, p. 131-42 in University priorities and constraints, Weber, Luc E. and Duderstadt, James J. (eds.). Glion Colloquium Series. n. 9 (Economica London, Paris, Genève, 2016).
MAZZUCATO, M. O Estado empreendedor. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
BUSH, V. Science: The endless frontier. Reproduzido em Revista Brasileira de Inovação. v. 13, n. 2 jul./dez. 2014.