Existem dois principais acontecimentos na vida humana com rituais e práticas em diferentes culturas – o nascimento e a morte. No Brasil, o nascimento se transformou numa prática cirúrgica. Desde a década de 1970 este modelo de assistência tem aumentado significativamente no país, ultrapassando o índice de 15% recomendado pela Organização Mundial de Saúde. O inquérito chamado “Nascer no Brasil”, uma ampla investigação sobre o nascimento e o parto no Brasil, foi coordenada por Maria do Carmo Leal, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz, segue a entrevista:
Observatório - Você tem contribuído significativamente para a pesquisa no âmbito da Saúde materno-infantil. Conte sobre a sua trajetória.
Maria do Carmo Leal - Como pesquisadora estou envolvida com a área da saúde da mulher e da criança há 30 anos. Iniciei meus estudos com a doença diarreica, com a mortalidade infantil, priorizando o componente pós-neonatal, depois o componente peri e neonatal e então aportei no estudo do parto e nascimento. Minha trajetória foi acompanhando a transição epidemiológica da mortalidade infantil, que era predominantemente concentrada no período após um mês de vida e foi se deslocando para o momento do parto/nascimento e primeira semana de vida do bebê.
Nesse período houve um decréscimo significativo da mortalidade infantil no país, em consequência da melhoria das condições de vida da população brasileira, redução da fecundidade e o desenvolvimento de programas sociais governamentais, com destaque para a criação do Sistema Único de Saúde – SUS. Mas, a queda verificada foi mais acentuada no período tardio que no precoce. Hoje, além dos óbitos precoces dos nascidos vivos, temos uma mortalidade fetal (bebês que morrem intraútero) muito grande, sendo que uma grande parte desses óbitos poderia ser evitável. Aliado a tudo isso, a mortalidade maternal é muito elevada no país e esses dois últimos problemas estão estreitamente associados à qualidade da atenção ao parto.
Observatório - A pesquisa Nascer no Brasil, a qual você coordena, envolveu muitos pesquisadores do Brasil, consequentemente tem produzido diversos impactos para o avanço do conhecimento, para a assistência, ensino, políticas públicas entre outros. Conte como foi o início da proposta, a condução do trabalho, as perspectivas e resultados.
Maria do Carmo - Esse estudo contou com a participação de pesquisadores de universidades em todos os estados do Brasil. O estudo contou com um coordenador estadual e vários supervisores e entrevistadores selecionados em cada um dos 27 estados brasileiros e no Distrito Federal.
Ao mesmo tempo que a coordenação da pesquisa exigiu grande empenho, o trabalho foi muito interessante por agregar a participação dos pesquisadores estaduais, que estão desenvolvendo, com os seus alunos, dissertações e teses com os resultados da pesquisa Nascer no Brasil. Atualmente, temos quase 30 trabalhos em andamento, em diferentes cursos de pós-graduação. E todos esses pesquisadores participaram como autores de artigos publicados em revistas científicas. A participação de pesquisadores estrangeiros se deu por meio da publicação de artigos, quando eles foram orientadores de doutorados sanduiche ou de pós-doutorado de algum dos participantes do estudo. Ou por terem participado de seminários e discussões científicas conosco, que resultaram em analises e publicações conjuntas.
De fato, esse estudo se constituiu no primeiro inquérito perinatal do Brasil e como tal, trouxe, pela primeira vez, um panorama da atenção ao parto e nascimento no país. Foi um estudo que mostrou a nossa situação e o quanto estávamos longe das recomendações feitas pelo Ministério da Saúde para essa assistência.
Também foi possível avaliar alguns avanços, como por exemplo, a presença de acompanhante na hospitalização para o parto, que, embora distante dos parâmetros pretendidos, já se tornara um direito reconhecido das mulheres. A quantificação da ocorrência das boas práticas obstétricas e de intervenções desnecessárias, tanto na mãe, quanto no recém-nascido, tornou-se uma referência, uma linha de base, para avaliações posteriores dessa política de atenção ao parto.
Quanto ao ensino, verificou-se que os hospitais estão reproduzindo nos seus espaços de formação profissional práticas obstétricas não baseadas em evidências científicas. É importante investir em mudanças ai, nesse espaço de formação, se quisermos mudar o modelo intervencionista de atenção ao parto. Para o campo das políticas públicas, o Nascer no Brasil confirmou o acerto do programa da Rede Cegonha do Ministério da Saúde, desde que, possamos verificar que o que é preconizado por essa política está ainda distante das práticas cotidianas no SUS e no setor da saúde suplementar.
A condução dessa pesquisa pela nossa equipe se constituiu em uma realização para todos e cada um dos participantes. Conseguimos dar grande visibilidade dos resultados do estudo para as famílias e para a sociedade brasileira como um todo. Tivemos espaço na mídia televisiva escrita e nos rádios para falar sobre os benefícios do parto vaginal para a mãe e o bebê e sobre os riscos de uma cesariana, sem a indicação clínica. Pudemos também oferecer evidências para o movimento organizados das mulheres, que lutam pelo direito a uma assistência que as considere e respeite, colocando-as no lugar de condutora e realizadora do seu trabalho de parto.
Como perspectiva, pensamos que esse inquérito deveria ter continuidade, sendo aplicado dentro de um determinado intervalo temporal, de sete ou dez anos. Temos a necessidade de monitorar os esforços do Ministério da Saúde para melhorar a assistência ao parto/nascimento, pelo impacto que traz para a saúde futura materna e principalmente do bebê. Mas, não sabemos se isso será uma prioridade.
Observatório - Houve um plano de impacto da pesquisa e estratégias de comunicação dos resultados?
Maria do Carmo - Sim, desde o começo do estudo, Nas visitas aos estados para treinar as equipes locais na coleta de dados, aproveitávamos também para divulgar a pesquisa em rádios, televisão e jornais pedindo que fossemos recebidos pelas mães, nas maternidades. Isso criou uma expectativa muito grande sobre essa investigação e suponho, que ajudou na divulgação dos resultados pelos meios de comunicação de massa. Outras estratégias foram: elaborar um sumário executivo com os principais resultados do estudo e com recomendações, numa linguagem acessível; produzir vídeos para serem distribuídos em larga escala, principalmente para as salas de espera de consultas pré-natais no SUS; preparar uma apresentação com os principais resultados em gráficos e tabelas para a imprensa no dia do lançamento do Portal; além disso, nos disponibilizamos para dar entrevistas, responder a jornalistas, ir a programas de rádio, televisão, etc, o que não é uma atividade muito fácil para pesquisadores.
Observatório - Qual foi o resultado da pesquisa que mais surpreendeu você?
Maria do Carmo - Tivemos vários resultados surpreendentes, principalmente porque muitos dos dados resultantes da pesquisa não eram conhecidos, como: a taxa de prematuridade do Brasil ser de 11,5%, o excesso de uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto, assim como, o uso e de episiotomia; o excesso do uso de oxigênio e aspiração traquel e gástrica nos recém-nascidos saudáveis; a mudança de decisão da mulher sobre o tipo de parto, durante a gravidez, nas que foram assistidas no setor privado; a alta prevalência de sintomas de depressão pós-parto; a quase ausência de enfermeiros obstetras/obstetrizes na assistência ao parto e muitos outros. Mas, o que mais me surpreendeu foi o interesse da mídia pelos resultados desse estudo. Para nós, isso foi um reflexo do quanto esse tema também era importante para a população.
Para saber mais sobre a Pesquisa Nascer no Brasil
Número temático nos Cadernos de Saúde Pública
Site da Pesquisa Nascer no Brasil
Sumário executivo
Especial na Radis
Mídias sociais
Vídeo
Levantamento teve como base o ano de 2015 e utilizou dados coletados de 1779 profissionais.