Vista como uma doença rural e restrita à região Nordeste até a década de 1980, a leishmaniose visceral avança rumo a centros urbanos cada vez maiores. Causada pelo protozoário Leishmania infantum chagasi e transmitida pelas picadas das fêmeas dos insetos transmissores, principalmente da espécie Lutzomyia longipalpis, conhecida como mosquito-palha ou birigui, a doença se instalou em todas as grandes regiões, com quase metade dos casos (47%) concentrados no Nordeste, de acordo com o Ministério da Saúde (MS). Em 2016, o MS registrou 3.626 casos em pessoas, com 275 mortes, em todo o país. Em 2017, os estados de Rondônia e Amapá registraram pela primeira vez casos de cães domésticos com leishmaniose e em 2016 as cidades de Florianópolis e Porto Alegre, os primeiros casos em seres humanos.
Em São Paulo, desde 1999, quando os municípios de Araçatuba e Birigui, na região noroeste, registraram os primeiros casos em seres humanos, a leishmaniose visceral propaga-se rumo ao litoral. Dos 645 municípios paulistas, 177 já registraram cães ou pessoas com leishmaniose visceral. De acordo com um estudo publicado em fevereiro de 2017 na revista científica PLOS Neglected Tropical Diseases, até 2020 o número de cães infectados deve aumentar em Balbinos, Sabino e Guaimbê, na região central do estado, em razão da proximidade com a rodovia Marechal Rondon, da temperatura elevada e da ocorrência de insetos transmissores; os cães atuam como reservatórios do protozoário causador da doença. O número de pessoas infectadas deve aumentar em Luiziânia, Alto Alegre e Santópolis do Aguapeí, também a oeste, em decorrência do aumento da umidade e da coexistência de insetos e cães infectados.
“A leishmaniose visceral está avançando por falta de informação que permita diagnosticá-la precocemente”, comentou o médico parasitologista Mauro Célio de Almeida Marzochi, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, em um encontro científico promovido pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo no final de abril na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Em agosto e novembro de 2016, um menino de 1 ano e 7 meses e seu irmão de 4 anos morreram no Guarujá, no litoral paulista, por causa dessa doença, diagnosticada tardiamente. Em 2017 o Guarujá registrou outro caso e Votorantim, cidade do interior paulista vizinha a Sorocaba, também um, ambos sem mortes.
“O Lutzomyia longipalpis está bem adaptado às áreas quentes e de vegetação mais aberta, como o Cerrado”, observa a bióloga Eunice Galati, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). “O desmatamento e a substituição da vegetação nativa por monoculturas podem gerar ambientes desfavoráveis para essa espécie, que encontra nas cidades um ambiente propício para sua sobrevivência.”
A leishmaniose visceral manifesta-se nas pessoas inicialmente pela palidez, febre contínua, emagrecimento, tosse, diarreia e aumento de volume do fígado e do baço. Se não tratada, pode ser fatal para as pessoas, por causa dos danos ao fígado, ao baço e à medula óssea causados pela Leishmania. A letalidade é considerada alta, de 7,8% em média, e há poucos medicamentos contra essa doença. O mais adotado é o antimonial pentavalente, que consiste na aplicação de injeções intramusculares diárias durante pelo menos um mês. Embora eficaz na eliminação do parasita, seus efeitos colaterais são intensos, podendo causar dores musculares, náuseas, vômitos, inflamações nos rins e distúrbios gastrintestinais, cardiovasculares e respiratórios.
Em áreas de transmissão da leishmaniose visceral, nem sempre se reconhece o ciclo completo de transmissão da doença – mosquitos transmissores, cães e seres humanos infectados. Às vezes, encontram-se apenas cães infectados e insetos. Outras vezes, apenas casos humanos, como no Guarujá. Outra possibilidade é a identificação somente de cães e pessoas com leishmaniose, sem os insetos transmissores já conhecidos, como em Florianópolis, que registrou três casos em seres humanos e 125 em cães infectados em 2017.
De 2010 a 2012, o biólogo Fredy Galvis-Ovallos, pesquisador da FSP-USP, percorreu os municípios de Embu das Artes e Cotia, na Grande São Paulo, em busca da possível origem dos casos de leishmaniose canina registrados na região desde 2003. Não havia Lutzomyia longipalpis, mas ele encontrou muitos exemplares de Pintomya fischeri, espécie apontada como potencial transmissora de Leishmania infantum chagasi. “Mesmo se confirmada, a P. fischeri tem um potencial menor de transmissão que a L. longipalpis, o que poderia explicar a ausência de casos em pessoas nesses municípios.” No mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o parasita causador da doença pode ser transmitido por cerca de 30 espécies de mosquitos.
A leishmaniose visceral é um problema típico de países com condições higiênicas precárias, já que os insetos transmissores se reproduzem em matéria orgânica em decomposição e depósitos de lixo. Dos 82 países em que já foi identificada, sete concentram 90% dos casos: Índia (6.249 casos em 2016), Sudão do Sul (4.175), Sudão (3.810), Brasil (3.336), Etiópia (1.593), Somália (781) e Quênia (692). Em 2015, a OMS registrou 23.084 casos de pessoas infectadas com leishmaniose visceral no mundo.
Estratégias reavaliadas
A identificação de mosquitos, cães ou seres humanos infectados em grandes cidades tem motivado uma reavaliação das formas de combate à doença. “As estratégias de prevenção e controle deveriam focar na redução das populações de Lutzomyia e no bloqueio do contato entre elas e os hospedeiros nas áreas de alto risco de transmissão”, enfatiza a médica veterinária Anaiá da Paixão Sevá, pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP e principal autora do artigo prevendo a expansão da área de ocorrência de insetos transmissores, cães e seres humanos infectados. Marzochi, da Fiocruz, ressalta a importância da procura de casos humanos e caninos como forma de reduzir as mortes causadas por essa doença.
A eutanásia de cães infectados, prática recomendada pelo governo como forma de controle da leishmaniose visceral, “está cada vez menos sendo considerada”, diz o médico veterinário Francisco Edilson Ferreira de Lima Júnior, do MS. A eutanásia se mostrou pouco eficiente por causa da alta taxa de reposição de cães infectados por outros, principalmente filhotes, mais suscetíveis ao parasita. Além disso, os proprietários dos animais podem assumir o tratamento com a droga miltefosina, aprovada para uso veterinário em 2017. A medicação tem um custo inicial de cerca de R$ 2 mil por mês e não elimina totalmente os parasitas.
Como estratégia adicional de controle da leishmaniose, o governo federal está avaliando a possibilidade de distribuir – se tudo der certo, a partir de 2019 – coleiras impregnadas com uma solução a 4% de inseticida no controle de leishmaniose visceral em áreas de maior risco de transmissão. “O uso das coleiras tem um impacto maior que a eutanásia na redução da transmissão da leishmaniose visceral”, afirma o médico epidemiologista Guilherme Werneck, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Cada coleira custa em média R$ 100 reais, com efeito variável de quatro a seis meses.
O uso da coleira em cães propiciou uma redução de 60% da população de mosquitos transmissores do parasita em partes de Fortaleza, no Ceará, e de 15% em um setor de Montes Claros, Minas Gerais, em comparação com áreas de controle nas mesmas cidades, ao longo de 30 meses, de acordo com um estudo publicado em março de 2018 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, com a participação da UFRJ e da Fiocruz. De acordo com Werneck, o estudo em Montes Claros também revelou as limitações dessa técnica, ao indicar que não se consegue aplicar a coleira em mais de 75% dos cães de uma região e a perda da coleira chegar a 40% em seis meses.
“A coleira protege os cães sadios e evita a transmissão nos infectados”, afirma o biólogo José Eduardo Tolezano, diretor do Centro de Parasitologia do Instituto Adolfo Lutz (IAL). Ele coordenou uma avaliação do uso da coleira em cerca de 10 mil cães, infectados ou não, em Votuporanga, na região noroeste do estado de São Paulo. A taxa de infeção nos cães caiu de 12% em 2014 para 1,5% no final de 2015, quando o estudo terminou. “Houve uma clara associação entre a queda de casos de leishmaniose em cães e a redução de casos em seres humanos”, observou Tolezano.
O biólogo Osias Rangel, pesquisador da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), ressalta: “Ações de controle dos insetos transmissores não podem ser interrompidas. Se forem, a doença volta”. Werneck enfatiza: “Temos de mudar os pilares estabelecidos há muitos anos, sem comprovação científica, sobre prevenção e controle, porque hoje a leishmaniose visceral é uma doença urbana”.
Matéria originalmente publicada no site Revista Fapesp.