Pesquisadores realizam testes com a quinidina, fármaco já utilizado para tratar a malária. Foto: Divulgação
Pesquisadores do Instituto de Biologia da UFF dão mais um passo nas pesquisas sobre o tratamento da doença de Chagas, uma doença considerada como negligenciada, propagada pelo inseto conhecido como barbeiro. A novidade fica por conta dos testes com a quinidina, fármaco já utilizado para tratar a malária. O Chefe do Laboratório de Interação Celular e Molecular (Licem), professor Saulo Cabral Bourguignon, deu início em 2002 a sua linha de pesquisa na busca por compostos tripanocidas, ou seja, capazes de eliminar o Trypanosoma cruzi. “A doença de Chagas afeta as camadas mais pobres da população e recebe investimento irrisório da indústria farmacêutica, principalmente quando comparado com o investimento em HIV, malária e tuberculose. Dessa forma, essa tarefa sobra para as setores públicos, que infelizmente não possuem recursos suficientes para investir”, ressalta.
A pesquisa atual, que conta com a participação do recém-doutor pela UFF, Guilherme Curty Lechuga, é desenvolvida em parceria com o Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ e com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e possibilitou recentemente a publicação conjunta de um artigo na revista americana PLoS Neglected Tropical Diseases (Doenças Tropicais Negligenciadas), que possui um alto fator de impacto no meio científico.
No artigo, os pesquisadores mostram que o fármaco antimalárico conhecido como quinidina inibe a cristalização do heme em hemozoína e pode impedir a transmissão do parasito pelo vetor. “Após a picada do barbeiro no ser humano, o parasito que se encontra nas fezes do inseto necessita digerir a hemoglobina do sangue ingerido e, como subproduto dessa digestão, produz uma molécula tóxica (heme), que é cristalizada para não causar danos ao parasito. O principal mecanismo de ação da quinidina é a ligação ao heme, que impede a formação do cristal, levando-o à morte. Após o tratamento com a quinidina, observamos uma redução significativa na contagem total do T. cruzi no barbeiro. Os resultados são bastante promissores”, afirma Guilherme.
A publicação amplia também o debate sobre doenças que afetam parte da população que se encontra em situação de vulnerabilidade. Nesse contexto, o professor Saulo ressalta a importância de se pesquisar substâncias que possam tratar mais de uma doença considerada negligenciada. “Tratar com uma mesma substância duas doenças como a malária e a doença de Chagas é o que preconiza a Organização Mundial de Saúde, por reduzir os gastos com pesquisa e o tempo para aprovação do fármaco”, destaca o professor.
Os resultados dessa e de outras pesquisas auxiliam não só na criação de medidas preventivas mais eficazes, mas também no desenvolvimento de novos medicamentos ou de substâncias já usadas para tratar outra enfermidade, estratégia conhecida como reposicionamento de fármaco. De acordo com Saulo, medicamentos com efeitos colaterais pesados, como náuseas, dores de cabeça e vômitos, fazem com que os pacientes interrompam o tratamento. “É o que acontece atualmente com o benzonidazol, o único medicamento que temos no Brasil para tratamento da doença de Chagas. Daí a importância de se usar substâncias como a quinidina, cujos efeitos colaterais, já conhecidos, são menos danosos ao organismo”.
A pesquisa na UFF
Além de diversos artigos publicados em revistas internacionais e trabalhos apresentados em congressos científicos, o trabalho dos pesquisadores já resultou em dois pedidos de patente junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial. O primeiro teve origem quando o professor Saulo, na busca por compostos tripanocidas, recebeu a colaboração do professor do Instituto de Química, Vitor Francisco Ferreira. “Através dessa parceria, testamos muitos compostos derivados da lapachona, que é extraída da casca dos ipês. Em 2004, descobrimos uma substância denominada epoxi-alfa-lapachona, com alta atividade contra os tripanossomas e baixa citotoxidade para as células dos mamíferos, ou seja, uma ótima candidata para ser utilizada contra a doença de Chagas”, explica Saulo.
O segundo pedido de patente se refere à pesquisa realizada pelo doutor Guilherme Lechuga durante a realização da sua tese de doutorado, orientada pelo professor Saulo Bourguignon, em parceria com o grupo de síntese orgânica coordenado pela professora do Instituto de Química, Alice Bernardino. Na ocasião, eles investigavam a ação de moléculas pertencentes à classe das quinolinas, conhecidas por sua ação antimalárica. “Nosso grupo descobriu, em 2013, outro composto da família das quinolinas com alta atividade tripanomicida”, relata o recém-doutor Guilherme Lechuga. Além disso, os resultados obtidos no mestrado quanto à ação das quinolinas contra o agente causador da doença de Chagas levaram à publicação de um artigo na International Journal for Parasitology: Drugs and Drug Resistance, que possui fator de impacto 4.809 por seu alto número de citações entre a comunidade científica.
Guilherme faz questão de ressaltar que na contramão do descaso com a universidade pública e da constante luta por investimento, a pesquisa na UFF ganha ainda mais importância e resolutividade quando reúne num só trabalho diferentes disciplinas e cursos, promovendo a interlocução e a interdisciplinaridade acadêmica. “O conhecimento produzido mostra que a colaboração entre diversos grupos e instituições é necessária e fortalece a ciência brasileira, principalmente neste momento da economia nacional, onde o governo realiza cortes de recursos e de repasse de verbas para a pesquisa, prejudicando o avanço da ciência e a produção de novas descobertas”, analisa.
Brasil: aumento nas notificações de casos de malária e doença de Chagas
A maioria dos casos de malária e de doença de Chagas no território brasileiro, segundo o Ministério da Saúde (MS), se concentra na região amazônica. Os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Pará, de Mato Grosso, Rondônia, Roraima e Tocantins lideram em número de notificações.
Ao contrário do que muitos pensam, a picada do barbeiro não transmite a enfermidade, que se dá em função das fezes contaminadas do inseto, que ao chupar uma grande quantidade de sangue, defeca próximo ao local onde se alimenta. Após coçar a pele, a pessoa faz com que o parasita penetre a mucosa e se espalhe pela corrente sanguínea, tornando-se também um hospedeiro da doença. “A doença de Chagas é transmitida pelas fezes do barbeiro e a transmissão vetorial geralmente ocorre em locais com casas de pau a pique. No entanto, existem outros mecanismos, como o oral, que tem ganhado importância por conta do aumento de casos de transmissão por cana de açúcar e açaí. O barbeiro defeca no fruto, ele é triturado e quem o ingere se contamina. Outra forma de transmissão que tem ganhado destaque, sobretudo na Europa, se dá através de transfusão de sangue ou transplantes realizados sem o teste prévio”, esclarece o biomédico.
De acordo com Saulo, professor de Biologia Celular e Molecular, Carlos Chagas (1879-1934) não só identificou a doença em 1909, que recebeu o seu nome, como também identificou seu agente etiológico - Trypanossoma cruzi - e o vetor de transmissão da doença (barbeiro). O feito é um marco para a ciência brasileira e está nas bases da medicina tropical. Passado mais de um século, a doença de Chagas, que ainda hoje não possui um medicamento eficaz, devido a baixa quantidade de recursos financeiros investidos nessa enfermidade.
A universidade pública, segundos os pesquisadores, tem um papel fundamental no desenvolvimento de estudos que tenham essas doenças negligenciadas como objeto, pois elas acabam por não despertar o interesse da indústria farmacêutica. “A pesquisa na universidade tem como objetivo também atender demandas das camadas mais pobres, que não são contempladas por indústrias que visam apenas o lucro. Nosso compromisso com o desenvolvimento científico é, sobretudo, social. Estamos trilhando esse caminho aqui na UFF”, conclui Guilherme.
Matéria publicada originalmente na Universidade Federal Fluminense - UFF.