Os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) sublinham a influência dos atores sociais, do contexto social e das visões de mundo na construção das teorias e tecnologias. As abordagens desenvolvidas a partir da década de 70 são descritas como um momento de “virada interpretativa” para o entendimento da ciência e tecnologias como construções sociais e culturais. Olhar a atividade científica em seu contexto trouxe um questionamento crescente do status universal da ciência e aprofundou a crítica à ciência e a sua função na estruturação de poderes e desigualdades. Nas três últimas décadas os ESCT produziram contribuições importantes para renovar as abordagens socioconstrutivistas da ciência e tecnologia. Também contribuíram para pensar as formas de ir além do construtivismo. Abordagens “não ortodoxas” ganharam espaço, entre as mais influentes: a etnográfica, a crítica de base marxista e a feminista, chamada de Estudos Feministas da Ciência e Tecnologia (EFCT) ou Estudos de Ciência, Tecnologia e Gênero (CTG).
Segundo Monteiro (2012), os Estudos feministas da Ciência e Tecnologia: “foram pioneiros em abordar a tecnologia e sua relação com corpos, processos biológicos e relações de poder; e uma leva crescente de autores interessados em práticas ligadas à genômica e outras biotecnologias emergentes” (Monteiro, 2012: 143). Os EFCT também se destacam pela capacidade considerar a inserção do próprio pesquisador e pesquisadora no âmbito da produção de conhecimento e a articulação entre pensamento científico e ação política. Evelyn Fox Keller – uma das pioneiras no estudo de gênero e CT– destacou a importância dos movimentos feministas da “Segunda Onda” (aqueles surgidos entre as décadas de 70-80). Segundo a autora, o movimento político e social feminista deve ser reconhecido como o precursor dos “estudos de gênero e ciência”. “A mudança social que o feminismo produziu forneceu novos ângulos, novas maneiras de ver o mundo, de ver as coisas mais comuns, abriu novos espaços cognitivos” (Keller, 2006: 30).
Dentro do campo dos Estudos Feministas da CT, segundo Marta García, a influência do ativismo feminista e a categoria gênero, teriam tornado “quase natural, mesmo que não simples e fácil” uma perspectiva na qual a produção de conhecimento e a política estão mutuamente implicadas. O feminismo não teria se esquivado de enfrentar desde suas origens os problemas de compatibilizar análises metacientíficas com compromissos sociopolíticos e trabalhar a convergência entre o acadêmico e o ativismo concebendo uma “epistemologia socialmente comprometida” (García, 1999: 50-51).
A reflexão sobre a relação corpo-mente-tecnologias-sociedade e normativas de gênero foi um dos aspectos também “radicalizados” pelo EFCT em diversas de suas vertentes. O chamado Feminist Standpoint e autoras como Dona Haraway desenvolveram, dentro de perspectivas feministas, a noção de que todo conhecimento é um conhecimento situado, ou seja, parte de um contexto de geração e de pressupostos que deveriam integrar de forma explícita a própria análise. Os conhecimentos situados, saberes localizados ou perspectiva parcial, compõem a proposta epistemológica de localização, de parcialidade do conhecimento.
Toda a produção de conhecimento implicaria em reconhecer um ponto de partida (locus), um local de origem que se relacionada com o exercício da produção e o que será produzido. Para a autora, esses pressupostos deveriam ser reconhecidos e colocados como parte da análise, ao invés de se optar por aquilo que chama de “truque divino” (God trick), ou seja, um mecanismo que oculta o caráter localizado do conhecimento e o apresenta como um resultado final possível de ser universalizado. A ideia deste locus não significaria, segundo Haraway, uma filiação, no sentido de que para falar de uma questão que concerne a um grupo específico você precisaria ser parte deste grupo, mas que toda teoria parte de uma motivação, de experiências, conexões e reflexões particulares. Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro (Haraway, 1995: 17). Mas, reconhecer as histórias e experiências compartilhadas pelas mulheres, para o Feminismo Stanpoint, não é o mesmo que homogeneizar e reforçar esteriótipos.
Esta vertente feminista, em síntese, busca relacionar o conhecimento (incluindo o científico) as várias condicionantes que compõem o capitalismo/patriarcado. É entendida como uma teoria de “inspiração marxista” que reelabora uma forma de materialismo histórico especificamente feminista. Reconhece que as experiências das mulheres estão constituídas de uma multiplicidade de fatores interdependentes e relativos à formação sociocultural capitalista, etnocêntrica, sexista, androcêntrica e patriarcal.
O interessante desta proposta teórico-metodológica é que não evoca uma perda da objetividade como tal; pelo contrário, a “objetividade forte” feminista considera que tornar presentes no momento da pesquisa os múltiplos aspectos que constituem o mundo, a ciência e os seres humanos pesquisadores/as (valores, emoção, contexto cultural e histórico, etc.), tornaria este tipo de ciência mais objetiva e não menos. Santos também coloca que o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo não significaria negar a objetividade ou racionalidade como componentes centrais de várias formas de conhecimento, claramente do científico; ou mesmo adotar uma perspectiva relativista de que todos os conhecimentos seriam igualmente aplicáveis em todos os momentos.
Situar o conhecimento parece particularmente importante para pensar junto com os diferentes feminismos e movimentos de mulheres camponesas e indígenas na América Latina. Permite sublinhar as questões relativas à colonialidade do saber-poder, fazendo uma crítica à pretensão de universalização dentro do próprio feminismo. Segundo Evelyn Fox Keller (2006: 30), a grande força das pesquisas feministas na última década teria sido aprofundar a reflexão sobre o quanto o próprio gênero deve ser uma noção situada.
No que diz respeito aos movimentos feministas fora da Europa e dos Estados Unidos, existem aqueles claramente identificados como feministas, a partir de uma visão do feminismo europeu e norte-americano, como pelo sufrágio, aborto, direitos a saúde reprodutiva/familiar e diversos temas relativos ao “respeito à diferença” em termos de sexualidade. Outros movimentos possuem origens e características distintas desses “feminismos hegemônicos” (como são chamados por algumas feministas pós-coloniais).
Diversas ações coletivas de mulheres latino-americanas, que têm se destacado em termos de resistência epistêmica, tecnológica e cotidiana poderiam não se encaixar e definições feministas do Norte. Estas ações coletivas trouxeram outras epistemologias feministas, como Feminismo Descolonial e Feminismo Comunitário, que têm se destacado por sublinhar as noções de bem comum, comunidade, bem viver e articular as preocupações feministas as lutas nos territórios e por um buen vivir em comunidade que inclui o exercício da empatia, cuidado e proteção à natureza.
O maior desafio conceitual estaria em entender a prática e os discursos de comunidades e grupos étnicos particulares sem utilizar discursos relativistas ou noções essencializantes de tradição e cultura. Parece necessária praticar uma intensa “ginástica mental”, palavras de Rita Segato (2011), para trabalhar academicamente em diálogo e ainda mais em momentos de formulação de políticas dirigidas a grupos e comunidades identificadas (por outros e/ou por elas mesmas) como tradicionais ou mesmo para determinado grupos de mulheres.
“A crise” que vivenciamos atualmente enquanto sociedade humana possui dimensões econômicas e socioambientais globais cada vez mais evidentes (energética, climática, péssima condições de vida nas metrópoles, deterioro das condições de solo, seguridade alimentar), mas também um caráter ético e epistêmico. Uma crise com aspectos produtivos, pelas transformações e impossibilidades do “mercado e trabalho” e, ao mesmo tempo, passa pela impossibilidade de negar o aprofundamento das desigualdades e conflitos (terrorismo, migrações, pobreza e exploração maior do trabalho da maioria, fim de seguridade e direitos). Este contexto tornou mais urgente à necessidade de questionar a racionalidade economicista, instrumental, patriarcal e antropocêntrica do capitalismo e de inventar novas formas de produção/reprodução e convivência.
Tomar a sério a marcada desconexão entre os procedimentos científicos e os contextos e necessidades sociais, com o “mundo da vida”, ou entre a produção tecnocientífica e os valores necessários para sustentar uma “existência humana legítima” (Ramos, 2014:722) e superá-la. Isto inclui a impossibilidade de nos separamos da natureza, pensar e atuar no inescapável campo do socioambiental.
A centralidade da sustentabilidade da vida (em termos humanos e não humanos pela prática de uma ética coletiva de cuidado) e a crítica a “mau desenvolvimento” são consideradas por teorias feministas que apontam para noções não antropocêntricas. Como sublinha Amaia Pérez Orozco (2014: 26) são propostas que apontam para um horizonte ético, epistêmico e prático de “buenos vivires” que tem como prerrogativa o direito a vida não precária. Há mais de 20 anos a ecofeminista Vandana Shiva vem contribuindo com uma crítica aos reducionismos científicos. Esta autora estabelece uma relação causal entre o comportamento predatório e socialmente aceito de saque dos “bens comuns” (terra, água, ar, biodiversidade) e as interpretações científicas reducionistas sobre a vida. Tais interpretações formariam a base cognitiva das formas de “mau desenvolvimento”, entendidas por ela como um conjunto de processos de violação da integridade de sistemas orgânicos interconectados, processo que geram exploração, desigualdade e violência, afetando principalmente as populações do Sul e as mulheres (Shiva, 1995).
Valores específicos, como ressaltam os EFCT, produzem conhecimentos, tecnologias e sistemas tecnocientíficos específicos. A produção de conhecimento feita no âmbito da ciência não é capaz de neutralidade e está implicada com visões de mundo e valores e, portanto, com aspectos políticos, culturais e econômicos, etc. Os conhecimentos tecnocientíficos produzidos por métodos e abordagens reducionistas, nos termos de Shiva, e descontextualizadas, nos termos de Hugh Lacey, constitui-se como parte dos mecanismos “socialmente aceitos” de violência direcionada a própria integridade da vida. Esta violência não se circunscreve à redução da biodiversidade ou à degradação dos ecossistemas, mas também a processos de redução de culturas, conhecimentos e processos geradores de epistemologias, o que Boaventura de Sousa Santos chamou de “epistemicídios”. A “proliferação de epistemologias do Sul”, segundo este autor, seria fundamental para reverter os processos de aniquilamento de epistemologias de povos e de comunidades fora deste eixo “modernizado” que operam por meio de mecanismos de “saber-poder” nas esferas econômica, cultural e de produção de conhecimento.
Diversas ações coletivas que se manifestam na América Latina atualmente trazem contribuições epistêmicas e éticas importantes para pensar caminhos alternativos à crise socioambiental. Como os coletivos de mulheres e teorias feministas (notadamente a Economia Feminista) que têm contribuído para repensar a distinção entre produção/reprodução e a necessidade de colocar a “sustentabilidade da vida” como o eixo central das sociedades humanas e de universalização da ética do cuidado.
O pensamento indígena, campesino e de outras comunidades identificadas como tradicionais têm sido descredenciados e “transformados em ausentes” pelas relações assimétricas e predatórias estabelecidas entre os conhecimentos tradicionais e os científicos, um processo de aniquilamento (“epistemicídio”) baseado na “rivalidade de conhecimentos” (expressões utilizadas por Boaventura de Sousa Santos). Para reverter esse processo, que faz parte da própria história da Ciência Moderna Ocidental, Boaventura propõe que os conhecimentos sejam produzidos por processos sociais de colaboração/coexistência, o que chama de “ecologia de saberes” – capazes de promover não o aniquilamento, mas a “proliferação” de epistemologias. Refiro-me aqui a coletivos campesinos e indígenas latino-americanos como: Asociación Nacional de Mujeres Rurales e Indigenas (Chile); Mulheres e Agroecologia em Rede e Movimentos de Mulheres Campesinas (Brasil); Articulación Nacional de Mujeres Tejiendo Fuerzas por el Buen Vivir (Guatemala); Colectivo de Mujeres del Chaco Americano (Argentina, Paraguai, Bolívia, Brasil), entre tantos outros.
No entanto, esta contribuição do pensamento das ações coletivas indígenas, campesinas é transformada em ausente pelas relações assimétricas e predatórias entre os conhecimentos tradicionais e os científicos. Buscando possibilidades distintas de concepções colaborativas de éticas e conhecimentos, parece importante fazer proliferar espaços e movimentos que provoquem diálogos e imbricação entre as concepções, teorias, propostas políticas de ações coletivas e acadêmicas e/ científicas, colocando-as não como insumos para a produção de um conhecimento científico ocidentalizado, mas como epistemologias políticas ontologicamente significativas.
Essas vozes tornadas ausentes na produção de conhecimento científico e nas arenas onde se formulam as políticas institucionais nos diversos países da América Latina podem contribuir para pensar caminhos de transformação e sentidos que não sejam orientados por noções exploratório-instrumentais entre humanos e natureza. O diálogo entre conhecimento acadêmico e as epistemologias políticas indígenas, feministas, campesinas, populares e comunitárias oferecem uma oportunidade de repensar os paradoxos, contradições e limites conceituais da crise do “antropoceno” que vivenciamos enquanto planeta porque provocamos enquanto civilização humana.
Referências
García, M.I.G. (1999). “El estudio social de la ciencia en clave feminista: género y sociologia del conocimiento científico” Em Barral, M.J; Magallón C. M; Sanchez M. D. (edts). Interaciones Ciencia y género. Barcelona: Icaria Editorial.
Farah I. H. e Vasapollo L. (cord.) (2011) Vivir Bien: Paradigma no capitalista? La Paz: CIDES/UMSA.
Haraway, D. (1995). “Saberes localizados: a questão da ciência para o Feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, número 5, pp. 7-41.
Keller, E. F. (2006). “Qual foi o impacto do feminismo na ciência?” Cadernos Pagu, número 27, pp. 13-34.
Lacey. H. (2014b). Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica. Scientia Studia, São Paulo, v.12, n.4, p.669-695.
Monteiro, M. S.A. (2012). “Reconsiderando a etnografia da ciência e da tecnologia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol. 27 n° 79 junho.
Orozco A. P. (2014). Subversión feminista de la economía. Aportes para un debate sobre el conflicto capital-vida. Madrid: Traficantes de Sueños.
Ramos M. C. (2014). A ideia de racionalidade subjacente ao modelo de interações entre ciência e valores: florescimento cognitivo, humano e da vida, Scientia Studia, São Paulo, v.12, n.4, p.711-726.
Santos, B. de Sousa. (2006). A Gramática do Tempo. São Paulo: Cortez. [1ª ed.]. Santos, B. de Sousa. (2007a). “Para Além do Pensamento Abissal: Das Linhas Globais a uma Ecologia de Saberes”, Revista Crítica e Ciências Sociais. 78, pp. 03-46.
Santos, B. de Sousa. (2009). Una epistemologia del Sur. México: Clacso, 2009.
Sedeño, E. P. (1999). “Feminismo y Estúdios de Ciencia Tecnologia y Sociedad: nuevos retos, nuevas soluciones”. Em Barral, M.J; Magallón C. M; Sanchez M. D. (edts). Interaciones Ciencia y género. Barcelona: Icaria Editorial.
Segato, R. (2011). Feminismo y poscolonialidad: descolonizando el feminismo desde y en América Latina. Buenos Aires: Acción Feministas Editora.
Shiva, V. (1995). Abrazar la vida. Madrid. Horas y Horas Editorial.